sexta-feira, 13 de março de 2009

O Caminhão Negro

41° | Dia
A máquina programada para nos acordar às quatro horas e trinta minutos persistiu em sua missão, mas atrasou quinze minutos dedicados a última soneca matutina. De pé, cortamos um mamão e então deixamos nossas palavras de gratidão e despedida na parede da casa Grooves e silenciosamente deixamos aquele lar alegre e agitado. Com muito peso nas costas descemos uma ladeira íngreme até a estação de ônibus onde entramos na condução coletiva que nos levaria até Simões Filho e de alternativo em alternativo, chegamos a Feira de Santana ás oito horas e trinta minutos, mas estávamos no centro da cidade e a Br-116 não era nosso alvo. Plataforma A ou B, poltronas 31 e 32 e então ás nove horas e vinte minutos fizemos nossa última baldeação para chegar a nossa rodovia ponto de partida para os dedos no ar. Cidades e pessoas que jamais havíamos visto e às ultrapassávamos para nosso destino incerto. O ônibus ia para uma cidade chamada Rumo, interior baiano, mas o deixamos no meio do caminho, abandonamos a Br-116 e na entrada da cidade de Argoím à beira da Br-242 sentamos no nosso ponto, e a sorte estava lançada. Apenas com o mapa na mão e nossa teimosa intuição estávamos diante de uma infinita rodovia que nos levaria a lugares também inéditos para nós.

Estávamos próximos ao meio-dia e aquela Br-116 era semideserta, podíamos sentar e comer algumas bolachas entre uma erguida de dedos e outra. Tínhamos em mente chegar até a Chapada Diamantina naquele mesmo dia ou no seguinte, pela metade do dia que já havia passado por nossos olhos a esperança de chegar no mesmo dia estava se esvaindo e já planejávamos o lugar mais adequado para passar aquela noite. A missão mais difícil de nossas vidas sem gota de dúvida. Em quarenta e um dias com os pés no mundo já havíamos engolido mais de mil quilômetros em companhias desconhecidas, ouvindo estórias extraordinárias a cada novo parceiro de estrada e nas próximas vinte e quatro horas teríamos que percorrer alguns outros mil quilômetros e da Chapada Diamantina até o Planalto Central que era o alvo número dois teríamos outros mil e vários quebrados, dessa maneira eram três vezes mais estradas em três ou quatro dias do que tivemos em quarenta e um dias.

A garrafinha de água atingia temperaturas altas, os lábios já tentavam ressecar e lutávamos com batom de cacau. O estômago já falava conosco clamando combustível e lutávamos com rosquinhas e as adversidades do sertão baiano já nos gritavam no ouvido.

Então daquela empoeirada visão de piso azul surge um enorme caminhão negro, um bi-trem, o nosso “Haku”, dali em diante o mundo giraria em um novo sentido. O relógio marcava onze horas e quarenta minutos e com sotaque caipira, Alessandro que carregava sal nos convidou para entrar em sua casa-móvel. Aquelas toneladas de sal estavam vindo de Mossoró, Alessandro havia encontrado uma namorada em Fortaleza e nos disse que quase mensalmente fazia o trecho, Fortaleza, Mossoró, Brasília e São Paulo em seu caminhão negro.

Todas as nossas grandes mochilas cabiam tranqüilamente no interior daquela cabine acolchoada e repleta de travesseiros e cobertores. Rádio amador e som para nossos ouvidos. Tínhamos a certeza de uma longa e admirável jornada até Brasília. A idéia de parar na Chapada Diamantina havia sido deixada de lado graças à pesada sorte preta.

Alessandro era o nome daquele gentil homem que havia nascido em Palmital, interior de São Paulo e lá vivia. Parecia que aquela criatura havia nascido para contar estórias e bem rápido nos sentimos à vontade para dividir com ele alguns de nossos feitos. Contos do que foi vivido, sempre o que deu errado, as estórias desviantes sempre maravilhosas, a vida pelo lado errado como gozo.

A visão era panorâmica e a música não parava de tocar. Nossos olhos atentos, sempre arregalados vislumbrando cada metro daquela enorme serpente que chamam estrada. Quando bocejava e mantinha a boca aberta, se tinha a impressão de estar a engolindo.
Enormes plantações de manga e animais mortos eram sempre vistos, e na minha cabeça sempre vinha o Jesus Cristo dos Animais Atropelados.

O rádio amador vez por outra emitia alguns sons e o nosso parceiro Alessandro se comunicava com aquelas vozes como se as conhecesse, pareciam amigos íntimos, mas eram apenas vozes desconhecidas de rostos desconhecidos, ondas solitárias que se ligavam preenchendo o vazio contido em todas elas.

Quando as ondas de rádio soavam, Alessandro não era mais Alessandro, ele se tornava o “Mal Falado”, cada um daqueles motoristas tinha um apelido, uma espécie de nickname. Digamos que seja o IRC primitivo.

O Mal Falado estaciona o Caminhão Negro em um posto a beira da Chapada Diamantina, parecia querer nos presentear e mesmo que não, de fato aquela parada foi um presente para nós. Suco de Manga sentados à beira daquela gigante elevação coberta de vegetação muito verde. Suco de Manga por conta do Mal Falado

A viagem segue seu rumo, crianças pedintes ao longo da estrada. Elas saíam de um casebre de taipa, a casa era pequena e as crianças eram muitas. Pareciam se multiplicar como ratos, suas faces diziam fome e viviam ali a mercê de algumas pratas que lhes eram atiradas.

À medida que engolia a serpente ou à medida que a estrada era deixada para trás, uma voz martelava minha cabeça dizendo: “Estais se distanciando do litoral”. Sempre me ocorre isso quando me dirijo ao centro-oeste. Não é bom ficar sem praia por muito tempo. Muito menos para um Homem Sereia.

Mais suco de manga à beira da estrada, de longe pude avistar torres altíssimas sobre os montes, Pequeno devia estar lá em cima consertando a rede mundial de Internet. Sempre torres altas me dão essa lembrança. Sempre que a Internet de sua casa parar de funcionar e depois voltar ao seu perfeito funcionamento, agradeça a Pequeno, ele está por trás de toda a rede de comunicação binária.

Mensagens do além me alegram, o pôr do sol nos atingia os olhos e víamos subidas de praticamente 130°, tipo parque de diversões e logo estávamos descendo a Serra da Mangabeira mais traiçoeira da Bahia. O sol não estava mais conosco e vivemos alguns momentos de tensão, o rádio ressoa, os amigos de vozes desconhecidas anunciam que uma das mãos da via estava sendo ocupada por um caminhão quebrado em plena curva e estávamos ainda descendo. Mas o perito Mal Falado com cautela nos livra do susto.

Uma janta muito oleosa de macarrão e vegetais em um posto no meio do nada e depois de alguns outros quilômetros percorridos paramos em um outro posto, dessa vez em uma cidade fantasma, algumas das quais não estava contida no mapa. Jantar na conta na conta do Mal Falado. E foi lá essa cidade fantasma que fechamos nossos olhos de uma da madrugada. Dentro do caminhão, dormimos os três, com conforto digno de pousada de interior. Simples, fofo e rústico.

3 comentários:

Ana Morena disse...

UAU!!!

Breno Moreno disse...

que bonito. :)

jantas oleosas sempre me lembras as minhas jantas da madrugada. mt macarrão. mt óleo. =P

Olga Alves disse...

Que resumida booooa ein?! rsrsrs
Meninote, uma bela viagem essa! A pessoa deve sair disso tudo com uma sensacao da porra de que o mundo é bom, e isso deve ser grandioso demais...

"Quando bocejava e mantinha a boca aberta, se tinha a impressão de estar a engolindo." Uma bela passagem, sem dúvidas.

E eu estava lá.